05/01/08

Rosas do Minho

Quando era miúdo, ainda antes da escola, havia um local onde eu ia várias vezes. Ora buscar o "especial" para o almoço, ora chamar o tio e o padrinho para almoçar, ora buscar o "especial" para o jantar e trazer os adultos, ora chamar algum deles para vir ao telefone, etc...Chamava-se Rosas do Minho e durante muitos anos foi a tasca de referência do bairro onde nasci. A tasca era por onde os adultos estavam sempre depois da hora de trabalho e tantas vezes durante. Não se podiam juntar no jardim em frente, mas podiam estar na tasca. Se beber vinho era dar de comer a 1 milhão de portugueses, tinham de os deixar beber e eles bebiam. Alguns bebiam muito e embebedavam-se, outros ficavam tocados logo ao 1º copo, tinham a caldeira aquecida era o que diziam. Às vezes, algumas por dia, zangavam-se e lutavam. As razões das lutas eram sempre absurdas: o Pinguinhas pisou o Surdo e este mandou uma piada qualquer que o Pinguinhas não gostou..., o Neto estava a falar do Cantinflas e disse que o filho do António da Farmácia dava ares ao gajo, o António ouviu deu-lhe um murro e desatou tudo à pancada... Depois ao outro dia pediam-se desculpas, pagavam-se uns copos e voltava tudo ao mesmo.
A conjugação era perfeita, todos tinham um filho ou um irmão ou sobrinho na guerra, todos acumulavam medos de perda, as mulheres acordavam a chorar e as mais religiosas rezavam pela sorte dos que tinham em África. Impotentes no lar,com proibição de falar alto, o vinho ali à mão e quando a tensão se superiorizava à capacidade de suster a raiva desatavam à porrada para descarregar. As mulheres não se importavam porque sempre era melhor descarregarem na tasca do que em casa. Com os anos todos ficavam com "barriga de água" que era a doença mais comum a partir de certa idade e era, quase, uma inevitabilidade. Contudo, eram todos apreciados nos locais de trabalho fosse no matadouro, fosse na Sacor, fosse na APT, fosse em Beirolas, fosse onde fosse. Ninguém queria ser rico, ser rico era ser bufo, era pertencer a eles. Quando alguém adquiria, por exemplo, uma motorizada, explicava na tasca tostãozinho a tostãozinho como tinha arranjado o dinheiro.
A vizinha Gorete ficou sem o filho, morreu afogado em Moçambique disseram-lhe, o marido não aguentou e enforcou-se nas oliveiras em frente à casa. Toda a vizinhança ficou responsável pela Gorete, levavam-lhe as refeições, iam lá um bocadinho, essas coisas. A nós coube-nos o jantar de 4ª feira e lá ia eu com o tachito embrulhado em jornal. Quando anoitecia mais cedo acontecia-me sucessivas vezes cruzar-me com os polícias a cavalo, que lá de cima do animal me obrigavam a desembrulhar o tacho e a explicar toda a história, todas as vezes. Durante muitos anos a minha imagem de medo era um cavalo enorme malhado a preto e branco que de repente me quer chicotear com a cauda. Mas nunca falei disso a ninguém e não sei como percebi que não devia falar.
Nas Rosas do Minho também não se falava dessas coisas, nem da polícia, nem do filho da Gorete, nem da guerra, népias. Os homens olhavam-se nos olhos, engoliam o vinho do copo e estava tudo dito.

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