20/10/04

Estamos caladinhos ou...

A seguir à obsessão pelo défice estamos agora a entrar na obsessão pela censura. Outras obsessões ficaram pelo meio, mas é nesta, a da censura, que eu acho importante que nos concentremos. É certo, e sabido por todos nós que existem nos locais de trabalho, nas escolas, na vida social várias fórmulas que restringem a liberdade de dizermos o que nos vai na alma. Quase toda a gente aceita isso embora não reaja bem. Mas como podemos nós dizer a um chefe exactamente o que pensamos se isso puser em risco o pãozinho dos nossos filhos? – Dirão as pessoas. Não concordo mas aceito, aceito porque compreendo e não concordo porque acho que devíamos ter a obrigação de fazer com que o dizer exactamente o que pensamos não causasse qualquer risco.
Outra coisa engraçada nestas repressões ao verbo, porque não podem ser ao pensamento, é o ser aceite como normal dizer-se: - Oh pah, não se pode dizer essas coisas ao patrão, e se alguém perguntar o porquê, a resposta é imediata: - Porque é o patrão, ora essa!
Ou seja, não tem por isso outra explicação sem ser que ele te pode despedir ou prejudicar, não é?

Pois é, o ministro Morais Sarmento volta de novo ao ataque e quer, não só mandar nos órgãos públicos de comunicação como quer que acreditemos que assim tem de ser. Não interessa se ele o vai fazer ou não, nem interessa como e sabem porquê? – Porque já está feito! A sua investida já pôs muita gente a pensar no tal pãozinho dos filhos, na sua vida, nos seus proventos. Morais Sarmento percebeu, com o caso do Prof. Marcelo, que afinal é fácil atenuar o efeito das forças de bloqueio como Cavaco chamou. Claro que para Morais Sarmento e demais governantes não se trata de censura, mas também não explicam do que se trata. Ora lá está a máxima: há coisas que não se devem dizer sobre o governo. Porquê? – Porque é governo, ora essa!

Graça Franco num artigo publicado 2ª feira no Público deixa alguns dados sobre a censura que eu vou transcrever aqui:

…”Mas como a memória é curta e há gente sensível aos argumentos de que "ninguém quer calar ninguém", aqui ficam alguns dados para reflexão dos mais novos.
A censura do Estado Novo surge logo no ministério de Gomes da Costa, que por ironia nem durou um mês! Nunca ninguém a defendeu ou veio anunciar com pompa e circunstância. É filha de pai incógnito e a mãe (a frágil ditadura) sempre a rejeitou.
É criada por uma simples nota do comandante da polícia, a título excepcional, mas isso não a impede de permanecer em acção e no essencial intocada 48 anos. A primeira lei de imprensa do regime, publicada ainda em 1926 durante a ditadura de Sinel e Carmona, proíbe a sua existência e consagra a liberdade de expressão. Indiferente, ela continua a existir e a cortar inclusivamente notas oficiosas. Em matéria de liberdade de expressão, a Constituição de 33 quase não difere da de 1910. É só no decreto que regulamenta o exercício dessa liberdade, publicado no mesmo dia em que entrou em vigor a lei fundamental, que se assume, finalmente, a instituição da Censura já em vigor vai para sete anos. Aí permanecerá sem alteração até 72, quando o seu nome muda para "exame prévio" e tudo fica na mesma.
Durante a sua vigência nunca terá critérios claros e continuará a ser permitida a aparência de pluralismo da imprensa. Não será cortado na "República" o que não passa na "Voz". Embora favorável ao regime, a direita nunca será poupada. Na "Voz" chegam a ser amputados os textos de Correia Marques, um dos maiores defensores da política de Salazar. Só as quintas linhas do regime (tipo o nosso ministro Gomes da Silva!) são capazes de lhe assumir a bondade... Jamais a elite e os seus líderes.
Carmona dirá ao jornal "Mundo", em Junho de 26, "coisa alguma repugna mais o meu espírito liberal do que a censura à imprensa", acrescentando que "os boatos falsos, as notícias tendenciosas, desorientam o espírito, provocam a agitação. É preciso evitá-los. O Governo não receia a crítica. Deseja-a até. Mas a crítica dos factos reais e não dos actos imaginários, a crítica nobre, elevada, serena." Estão a ver por que é que a crítica de Marcelo pode tornar-se indesejável para os novos censores? Beberam a inspiração aqui!
Em 72 será a vez de Marcelo dizer à "Capital" que a nova lei de imprensa só não porá fim à censura "porque não basta falar de um direito à informação, é preciso (...) garantir o direito à informação "verídica" (...) as meias verdades, as meias frases, os factos distorcidos compõem um tecido de mentiras que perverte a opinião".
Já antes Salazar diria, em 1933, numa entrevista a António Ferro: "Compreendo que a Censura os irrite porque não há nada que um homem considere mais sagrado do que o seu pensamento e a expressão do seu pensamento." Acrescenta: "Eu próprio já fui vítima da censura e confesso-lhe que me magoei, que me irritei, que cheguei a ter pensamentos revolucionários." Por que não a revoga nesse caso? Como argumento exibe a ilegitimidade da deturpação dos factos "por ignorância ou má fé". Mas, para lhe minorar os males, anuncia a criação do que viria a ser o Secretariado da Propaganda Nacional (mais tarde SNI), apresentado como "um bureau de informações a que os jornais poderão recorrer quando quiserem, para se munirem de elementos necessários à análise e até à crítica da Obra do Governo". Nada muito diferente da Central de Informação do dr. Morais Sarmento.
E seria o "bureau" o primeiro passo para abolição da censura?, pergunta Ferro. "Vamos devagar...", responde Salazar, a censura seria sempre necessária para moralizar "nos ataques pessoais e nos desmandos de linguagem...". Mas para evitar o policiamento externo, que sempre "significará, para quem escreve, opressão e despotismo", o presidente do Conselho propõe-se "oferecer" aos jornalistas a "solução para este problema, para esse aspecto da questão: por que não se cria uma Ordem dos Jornalistas? (...) Dessa forma o papel moralizador da Censura passaria a ser desempenhado pelos próprios jornalistas e dentro da sua classe. "Não lhe parece uma boa solução?", pergunta ao entrevistador. Não pareceu. Na classe não se conseguiram recrutar censores capazes de meter "na Ordem" toda a classe. Esperemos que nesta geração a recusa se mantenha! Mas não é certo...
Sem que esta ideia de avançar no que hoje se chama auto-regulação restaram os majores e os coronéis forçados a garantir o contraditório.
E fizeram-no bem. Em 1970, já com quase nove anos de guerra em África decorridos, ainda zelavam assim "pela verdade dos factos", como prova este mimo inscrito num telex recebido dos serviços de censura às 23h35 do dia 12 de Janeiro de 1970: "Na posse do 2º comandante da PSP de Lisboa: disse-se que ele já fez três comissões de serviço no Ultramar, a primeira 'logo na eclosão da guerra'. Ora, não há guerra. Não se pode dizer isso. Deve ter sido confusão do repórter... Coronel Saraiva."
Os comentários do professor Marcelo enfermavam frequentemente deste tipo de confusões.
P. S.: A Lusa mandou a 7 de Outubro um telex para as redacções com as declarações de Cavaco Silva lamentando o afastamento de Marcelo. Passados poucos minutos um novo telex chegava a corrigir o anterior. A magna alteração introduzida era a seguinte: no primeiro parágrafo, onde se escrevia "afastamento" passava a escrever-se agora coisa mais neutra, ou seja, "saída". Mas Cavaco não falava de saída, mas de "afastamento", palavra que passava a só constar entre aspas no segundo parágrafo. Sem contaminar a linguagem do jornalista. Não sei de quem foi a ideia da magna correcção. Talvez do próprio jornalista, "não fosse o chefe...", ou do chefe, "não fosse o director...", ou do director, "não fosse o ministro...". Ou seria do próprio ministro, para garantir rigor dos serviços tutelados? Valha-nos Deus! “

Vamos reflectir então….

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