07/10/04

Mais do Prof. 4

Contraditório

Por EDUARDO PRADO COELHOO FIO DO HORIZONTE

Quinta-feira, 07 de Outubro de 2004

Assistimos a um processo com duas vertentes, típico do estilo Putin: a democracia é a melhor coisa do mundo, desde que se considere que a democracia sou eu. Eu, neste caso, Santana Lopes. Eu, neste caso, Morais Sarmento. Eu, neste caso, Gomes da Silva. Ou, como dizia a presidente da Câmara de Oeiras em entrevista a Bárbara Guimarães, "para estar neste lugar, precisamos do apoio do cônjuge, neste caso, o marido". Neste caso...

Primeira vertente: convém impedir que quem discorde fale. Já o núcleo do PSD do Norte, constituído, como se sabe, por algumas das maiores cabeças do país (estou a falar do tamanho, claro), tinha vindo mostrar toda a sua indignação com os comentários de Marcelo Rebelo de Sousa. Não basta ser-se do partido do Governo, é preciso aparecer como porta-voz do pensamento do Governo. O que a médio prazo pode levar à esquizofrenia, dado que o Governo tem em si pensamentos diversos, e o próprio Santana Lopes pensa coisas diferentes no mesmo dia (o que mostra como é um espaço de liberdade e pluralismo). Desta vez, temos o extraordinário Rui Gomes da Silva, espaldado por Morais Sarmento num dos seus momentos menos felizes, a começar por exigir que se moderem os comentários de Marcelo Rebelo de Sousa na TVI. Estes comentários são hoje uma verdadeira instituição nacional, e com o apoio de gente desnorteada como o referido ministro (vão lá arranjar "contraditório" para esta afirmação...) arriscam-se a valer tanto como um partido político. Cabeças mais atiladas devem ter explicado, aparentemente com êxito, que afirmações destas não se fazem e que Gomes da Silva estava a criar um caso político onde ele não existia. O que só se compreende porque Marcelo, ao comentar a constituição deste sempre surpreendente Governo, traçou um retrato pouco abonatório deste admirável governante a quem o país tanto deve. O caso veio acrescentar-se ao clima de proibições que se pretende instalar: regulação de horários de discotecas, proibição de mini-saias numa escola de Colares, e agora tentativa de impor a Marcelo um contraditório. E ainda veremos o PSD do Norte propor que cada comentador de um jornal tenha o seu contraditório - que poderá mesmo ser um polícia de serviço.

Mas o Governo fez marcha-atrás. E Gomes da Silva veio dizer que "não há qualquer intenção de ninguém no sentido de silenciar Marcelo Rebelo de Sousa, ou de o próprio PSD avançar com um processo disciplinar contra ele" (o português é um pouco coxo, mas paciência...).

Supondo, talvez, que empilhando disparates se faz propaganda política - e entramos na segunda vertente, a central de manipulação ideológica -, Gomes da Silva acusou José Sócrates de "não conseguir pensar". Vindo de um verdadeiro especialista na matéria, a acusação é deliciosa. Gomes da Silva acha que a utilização por Sócrates do teleponto "foi única e exclusivamente porque têm de lhe escrever aquilo que ele tem que dizer". Suponho que um pouco de memória não ficaria mal ao nosso ministro dos Assuntos Parlamentares. É que as pessoas ainda se lembram, numa célebre tomada de posse, de Santana Lopes não conseguir ler o que para ele tinham escrito. Mas a explicação é dada pelo próprio Gomes da Silva, em estilo que merece a medalha de "o mais piroso": "O primeiro-ministro pensa muito antes de falar. Pensa acima de tudo nos seus compromissos com os portugueses, mas também o faz com alma, com o coração e com aquilo que pensa ser melhor para Portugal." E Gomes da Silva é, como sempre, um fiel discípulo.

professor universitário

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